Música, memória e um pouco mais

Hoje ouvi uma música que já tinha esquecido. Há muito tempo.
Quase cinquenta anos atrás ela me acompanhava, presente na memória, repetidas vezes cantarolada, alguns trechos mais que outros. E sempre que ouvia, ou cantava, renascia uma dor nebulosa que cobria o sol, levava embora a chuva, estremecia a terra. Era a dor de sempre. Ignorada por não entendida. Surda por que sem eco.
Hoje, passados tantos anos, entendo melhor esse sentir inexplicado, sem nascente, sem rumo. Entendo o como, não o porquê. Entendo, ou melhor, suponho uma ligação direta com uma terra mãe austera, severa. Com um pai céu distante, surdo como a dor que provoca.
Espio o passado comum, de rostos vincados, poeirentos e me vejo neles, mesmo que outro seja meu lugar. E percebo que essa identidade inexiste no real, como inexiste na fantasia. Ela paira sobre meus dias como um fantasma do que não sou. Um fantasma de um pretérito imperfeito.
Talvez eu seja mesmo, parte da imensa boiada, talvez um dia tenha me montado, tenha sido boiadeiro rei. Talvez tenha aprendido, há tempos, a dizer não, a ver a morte sem chorar, porque cotidiana, corriqueira, amiga de todas as horas.
Talvez.

Disparada

Prepare o seu coração
Pras coisas que eu vou contar
Eu venho lá do sertão
E posso não lhe agradar

Aprendi a dizer não
Ver a morte sem chorar
E a morte, o destino, tudo
Estava fora do lugar
Eu vivo pra consertar.

Na boiada já fui boi
Mas um dia me montei
Não por um motivo meu
Ou de quem comigo houvesse
Que qualquer querer tivesse
Porém por necessidade
Do dono de uma boiada
Cujo vaqueiro morreu

Boiadeiro muito tempo
Laço firme e braço forte
Muito gado, muita gente
Pela vida segurei
Seguia como num sonho
E boiadeiro era um rei

Mas o mundo foi rodando
Nas patas do meu cavalo
E nos sonhos que fui sonhando
As visões se clareando
Até que um dia acordei

Então não pude seguir
Valente lugar tenente
de dono de gado e gente
Porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata
Mas com gente é diferente

Se você não concordar
Não posso me desculpar
Não canto pra enganar
Vou pegar minha viola
Vou deixar você de lado
Vou cantar noutro lugar. (VANDRÉ, 1966)

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