“O ciúme dói…”

Três anos atrás, num Carnaval, encontrei a dita mulher.

Eu estava muito na minha, na cozinha da minha prima jogando conversa fora, quando ela entrou com a amiga, ambas já bem mamadas, com garrafinhas de uísque e cubinhos de agua de coco. Pelo menos me pareceu pela conversa que teve comigo que o uísque estava rolando há um bom tempo. Na verdade a conversa foi mais um monólogo, com ela falando sem pausas e eu, olhando a verruga escura do lábio superior que subia e descia ao abrir e fechar da boca, pensava o que aquele discurso queria dizer mesmo.

Enquanto ouvia e inclinava a cabeça em concordância, pensei que a coisa toda tinha muito a ver com o ciúme doentio do marido, meu namorado por um bom tempo. Na adolescência. Haviam-se passado, miseravelmente, 45 anos.

Quando ela começou a falar sobre o amor-à-primeira-vista que desabrochou entre ela e o marido, eu me desliguei mais e comecei a divagar sobre a qualidade do amor romântico, os mitos que ainda recobrem as relações amorosas. Se antes, só havia me tocado uma ligeira irritação pelo absurdo de tudo, ao imaginar o discurso sendo treinado durante a ida de carro até onde eu estava, a crescente ira que precisava ser contida na presença de amigas comuns, tive pena.

Nem quis, apesar de achar propícia a ocasião, iniciar uma discussão sobre a questão do amor-à-primeira-vista, enfatizando sua impossibilidade, inclusive porque o amor romântico só inicia sua existência no Brasil lá pros finais do século XIII, início do XIX. Não é, portanto, uma verdade em si. É uma construção. Além disso, amor pressupõe conhecimento; não dá pra amar quem não se conhece.

Pensei em ponderar que à primeira vista o que ocorre é atração sexual e aí intervêm diversos mecanismos físicos. O cheiro do outro (que não se confunde com a loção ou o desodorante) o perfil físico que materializa um ideal prévio de masculinidade ou feminilidade e um, ou outro detalhe que remete à figura masculina, ou feminina, proeminente da infância/adolescência, seja no sentido amoroso, seja no sentido aversivo. E os hormônios, claro, liga e parênteses de toda essa equação.

O amor vem depois. Ou não vem.

Quanto ao ciúme, no momento achei que era uma bobagem. Continuo achando. Imagino que seja o resultado da insegurança adolescente, mantida e continuadamente regada pelo senso de fracasso pessoal, que normalmente se compensa com a supervalorização do outro componente da relação. No caso, o elemento masculino.

Lembrei então da questão da fidelidade, tão enfatizada e celebrada: “prometo ser fiel, etc…”. Mas, o que é mesmo a fidelidade? Fidelidade no amor? Como alguém pode garantir que vai amar indefinidamente a mesma pessoa? Fidelidade sexual? Quem garante que o ato não está sendo compartilhado em pensamento com outros?

E pra fechar toda a reflexão, lembrei que para muitas mulheres, o “estar casada”, ter um amor recíproco “por toda a vida”, mesmo que ilusório, tem um significado muito maior que a conquista de seu próprio espaço, a descoberta de seu próprio poder. Na verdade é um substitutivo, que garante a submissão das mulheres a um modelo patriarcal de relações, onde a liberdade é restrita, o desejo é podado e a construção de si mesma um engodo.

No dia seguinte, soube que ela não tinha vindo porque o marido proibiu.

Fiquei feliz por ter me mantido calada. Fiquei feliz pelas minhas escolhas. E me compadeci.