Sobre Feliciano e Alvin Toffler

Lembro de uma manhã de domingo, um sol suave no céu de São Paulo, num brunch animado com filho e genro.
Discutíamos o avanço do fundamentalismo no Brasil e eu dizia que me preocupava mais o avanço do fundamentalismo no Congresso.
Na época, minha preocupação se baseava numa visão distante de futuro. Não esperava (inocente, que sou) que andasse a passos tão largos.
Percebo agora que o grande X da questão não é o fundamentalismo em si, mas a apropriação manipuladora que alguns indivíduos fazem da crença de muitos e a maneira inescrupulosa de usar os argumentos bíblicos em favor de suas psicopatias.
Como todos sabem, podemos usar a Bíblia para defender as teses mais contraditórias.
Durante muito tempo, generalizou-se a crença da incapacidade da mulher em gerir sua própria vida, com base nos versículos bíblicos, notadamente do Gênesis.
No capítulo 3, lemos como Adão e Eva foram criados e expulsos do Jardim do Éden, situado onde é hoje o Iraque e como o homem se justifica da falta cometida: O homem respondeu: “A mulher que pusestes ao meu lado apresentou-me deste fruto, e eu comi.” Por fim sabemos que por conta do erro de Eva, ficamos todos condenados ao sofrimento, principalmente a mulher: Disse também à mulher: “Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dores, teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio.”

Assim, repetidamente, trechos bíblicos serviram para justificar todos os absurdos possíveis.
A escravidão negra:
O SENHOR, porém, disse-lhe: Portanto qualquer que matar a Caim sete vezes será castigado. E pôs o SENHOR um sinal em Caim, para que o não ferisse qualquer que o achasse. (Genesis, 4:15)
“E agora [Caim] maldito és tu desde a terra, que abriu a sua boca para receber da tua mão o sangue do teu irmão.” (Genesis, 4:11)
“E saiu Caim de diante da face do SENHOR, e habitou na terra de Node, do lado oriental do Éden.” Genesis, 4:16

Caim é amaldiçoado pelo Senhor, marcado com “um sinal”, afastado de Sua presença e foi habitar a terra do Node do lado oriental do Éden, leia-se, à leste do atual Iraque, ou seja, África. E para que sinal maior que a escuridão da noite na pele?
O que esquecem, oportunamente, esses interpretes é que os livros foram escritos em determinados momentos históricos e correspondiam ao pensamento comum àquela época. E que as sociedades evoluíram!
O antigo testamento tem raízes e é fruto do pensamento patrilinear que orientava as sociedades naquele momento. Esse tipo de pensamento perpetuou-se e se espalhou pelo ocidente, através das igrejas. Obviamente representava e ainda representa a sustentação de uma sociedade machista e retrógrada.
Obviamente, também se esquecem os intérpretes que, anterior e paralelamente às sociedades patrilineares, existiram muitas outras sociedades matrilineares, com pensamento diverso e oposto. Que essas sociedades tenham sido submetidas pela espada não causa espanto a ninguém e essa predominância do homem sobre a mulher fica bem visível em todos os mitos, a exemplo da história peculiar do surgimento dos deuses gregos.
O que não podemos esquecer é que todas as justificativas de submissão de determinados grupos humanos por outros tem razões eminentemente econômicas. Por exemplo, os conceitos da monogamia, fidelidade e virgindade femininas foram cunhados no processo de fortalecimento da supremacia masculina e tinham por objetivo garantir a herança patrilinear – do pai para o filho. Nesse momento – e até bem mais tarde – as mulheres estavam excluídas da posse de bens.
Quanto à demonização dos africanos negros é notório que se deu por imposição de grupos econômicos que tinham como fonte de lucro a escravidão. É bem verdade que ao lado dos africanos estavam alinhados outros grupos, como os indígenas e outros povos menos violentos, mas apesar de longa e dolorosa, a escravidão dos demais povos passou a ser lucrativa e pode ser descartada com a teoria do bom selvagem que passou a vigorar na Europa – o bom selvagem seria o povo puro, descrente de Deus por ainda não conhecê-lo, ao passo que o africano tinha a culpa eterna de te-lo conhecido e por ele ter sido rejeitado e amaldiçoado.
Infelizmente, ainda hoje, vemos os mesmos argumentos usados em favor de tantos interesses escusos. E é doloroso perceber que em pleno século XXI nossa sociedade ainda se configura machista e retrógrada em muitos aspectos, independente dos avanços que fizemos no último século.
A mulher mudou. A figura feminina passou a ter uma relevância que anteriormente não tinha. Somos chefes de família há já um bom tempo. Somos provedoras e mães. Somos independentes da figura masculina, inclusive no momento de constituirmos nossa própria família.
Boa parcela de homens também mudou e passou a se constituir um grupo ainda marginalizado, incompreendido e estigmatizado.
As famílias mudaram. Não há mais um modelo familiar único. Hoje temos famílias constituídas de pai, mãe e filhos, mas cresce o número de pais solteiros, mães solteiras, dois pais e filhos, duas mães e filhos.
Isso tudo, visto da perspectiva atual, me lembra um livro de Alvin Toffler, onde ele comenta sobre os momentos de crise, quando se observa o embate entre o novo modelo social e o antigo. Toffler considerava a crise como fomentada pelos novos conhecimentos, que iriam nortear novos comportamentos, novos modos de viver e novos fazeres.
Pra mim fica claro que é esse o momento que vivemos em 2013. Novos modelos em fase de afirmação e os velhos modelos tentando sustentar suas posições e manter seu espaço de poder. Esse embate é o que vivenciamos na política do momento, em casa, no trabalho, no dia a dia.
Cabe a nós, a cada um de nós, irmos com o novo ou ficarmos. Com o velho, retrógrado e ultrapassado mundo. Lembremo-nos que a cada dia começa um novo ano.
Feliz ano novo a todos.

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